Mariana Correia Pinto | publico.pt | 28 NOV 2016
Para “aproveitar o silêncio” do atelier, de interiores vestidos de branco num edifício negro, António Belém Lima tem por hábito “madrugar”. Antes das sete da manhã já o arquitecto trabalha no número 1 da Rua do Entroncamento, em Vila Real, num edifício habitacional com a sua assinatura. No interior do país, testa uma arquitectura feita muitas vezes a partir de referências distantes: de outros trabalhos arquitectónicos, mas também de pintura, de desenho, do dia-a-dia banal. Belém Lima quer amar os territórios, e ao mesmo tempo desprender-se deles. Acredita na criação para lá do contexto: porque a arquitectura, diz, deve “igualar-se à paisagem”. Vila Real, a cidade onde nasceu, está recheada de obras dele: habitações, o Museu da Vila Velha, o Conservatório de Música, a Biblioteca Municipal. O Douro também. Em 2008, foi o vencedor do Prémio Arquitectura do Douro, com o Museu da Vila Velha. Em 2014, com a Adega Alves de Sousa, foi nomeado para o prestigiado Mies van der Rohe. Este ano repetiu a proeza ao ser nomeado para a edição de 2017 do prémio, com o Solar da Porta dos Figos, em Lamego.
Fez-se ao caminho da arquitectura depois de uma passagem de três anos pelo curso de Engenharia Electrotécnica, que fez em Coimbra durante dois anos e em Lisboa por mais um. Na capital, no café Monte Carlo, encontrou um mundo diferente e mudou de rumo. A escolha do curso de arquitectura em Belas Artes, percebeu depois, tinha até antecendentes genéticos: o pai era desenhador no único gabinete de arquitectura de Vila Real e Belém Lima cresceu entre desenhos. Entre revistas de arquitectura onde se reproduzia “um período áureo da Europa, a sua reconstrução, nos anos 60.” “De alguma maneira, isso deve ter-me ficado na memória”, contou ao P3 o transmontano nascido em 1951. Depois de Coimbra e Lisboa, regressou a Trás-os-Montes. Onde se mantém e manterá. Uma conversa sobre passado e futuro. Crise e resistência. Sobre um país que, "apesar das esperanças de Abril nunca deixou de ser desigual.
Fez o curso em Coimbra e Lisboa, mas acaba por voltar ao interior do país no início dos anos 80. Esse regresso às origens era importante para si?
Não foi estratégico. Simplesmente queria ter profissão liberal e aqui foi-me mais fácil. Conhecia mais gente. Não foi nenhuma ideia nostálgica de regressar. Pelo contrário. Era uma inocência regressar a uma região onde não havia riqueza e onde as oportunidades são muito menores. Aliava-se a isso uma certa inocência daqueles anos pós 25 de Abril em que acreditávamos que o país ia ficar todo igual e com as mesmas oportunidades. O que nunca aconteceu, nem vai acontecer. Apesar das esperanças de Abril, o país voltou a densificar-se e a enriquecer na costa. Só agora, com o esforço de alguns, temos uma área com uma economia viva e que se auto desenvolveu: a economia do Douro.
Foi difícil ganhar espaço?
A certa altura percebi que esta não é uma zona de grandes oportunidades. Mas o meu percurso de arquitecto foi-se auto sustentando. As obras — ainda que poucas, pequenas e com orçamento limitado — foram produzindo algum conforto na minha vida. Ainda hoje continua a ser assim. Entendi que era possível fazer essa arquitectura e ao mesmo tempo não prescindir dos meus princípios e objectivos profissionais. De certo modo, acho que foi até um exemplo para alguns arquitectos que estavam na mesma situação. Em 1994 fizemos uma exposição no CCB, “Arquitectura In-Possível”. Foi o reflexo de uma mudança e da entrada de outros pontos de vista que não os do Porto e Lisboa, onde se decidia a cultura arquitéctonica portuguesa.
De que forma ser um transmontano a criar no Douro se reflecte no seu trabalho?
Há uma fronteira entre duas posturas arquitectónicas diferentes. Uma que se constrói tendo como pretexto o contexto, o que está à volta, os antecedentes. E uma outra, da qual me aproximo mais, que se inventa com regras próprias. Um exemplo: as igrejas e as catedrais medievais seguiam regras da arquitectura religiosa, do românico ou do gótico, independentemente dos sítios onde estavam. Eram iguais em França, Portugal, Inglaterra ou Espanha. O valor dessa arquitectura vinha do modo de estar. Não é transmontana nem duriense. Apesar de não ignorar o contexto e a paisagem. A minha arquitectura não nasce de uma sensibilidade por estar neste local, mas também não é de outro local em particular. É uma arquitectura que ama os territórios onde se faz.
Mas consegue identificar características comuns à arquitectura feita no Douro?
Por exemplo, a utilização de grandes janelas e vãos, a relação entre interior e exterior. Há muitos exemplos disso. Mas não concordo muito com essa visão. Acredito que se passarmos o tempo a abrir janelas para a paisagem ela se banaliza. Muito vidro tende a significar mais transparência e, por isso, mais modernidade e uma obsessão de ver tudo. Tenho uma postura diferente: a paisagem é importante, mas a arquitectura deve igualar-se à paisagem. Ela própria criar condições para que a paisagem seja ainda mais importante e tenha mais força. A nossa atitude é de controlar ou filtrar o modo como vemos a paisagem e dramatizá-la. Em relação ao Douro em particular há outra questão: a do clima. Se há um carácter que influencia a arquitectura é o clima. O regime de calor extremo, a importância da sombra: isso são elementos que são matéria-prima para a arquitectura. Faz-se arquitectura com isso.
Sem ter como objectivo camuflar, é isso? Muitos colegas seus trabalham no sentido contrário...
Muitos não, a maioria. 97,5%. São duas posturas diferentes, não há uma mais correcta do que outra.
A visibilidade do Douro foi uma mudança importante no volume de trabalho dos arquitectos?
Sim. Mas é uma coisa relativamente recente, da última década. Há uns anos havia uns eventos chamados "Douro Duero", que juntavam fazedores de vinho portugueses e espanhóis. Convidaram-me para participar numa mesa redonda sobre arquitectura e vinho. Com o Fernando Guerra, que tem fotografado todo o meu trabalho, fiz um périplo pelo Douro durante um dia a ver adegas. Não havia quase nada de arquitectura contemporânea. Ao chegar a Espanha vi que todos os grandes arquitectos já estavam a fazer adegas. Daí para cá assistiu-se a um crescimento enorme que na minha opinião tem a ver com a energia na nova geração de enólogos, donos de quintas e produtores, que vive muito apoiada no mercado externo e que está a fazer um esforço para melhorar tudo. A tecnologia do vinho — a plantação, pôr inteligência na feitura do vinho, etc — e esse esforço foi-se expandindo até ao turismo, ecoturismo, adegas, marketing. Até à agricultura associada à feitura do vinho.
Como avalia o actual momento da arquitectura em Portugal?
Os arquitectos estão a sentir o mesmo que os enfermeiros, médicos, advogados. É uma crise que não é de uma classe e não é só portuguesa. Passa-se o mesmo em Itália, na Grécia e noutros países. Não tenho soluções. Uma das actividades económicas que entrou em colapso foi a construção. Portanto, ou a economia permite que haja desenvolvimento da construção ou não se resolve. No Porto e em Lisboa, o turismo e a atenção aos centros históricos está a criar algumas oportunidades. Essa atrapalhação dos jovens arquitectos é mais sensível no interior do que nas duas grandes cidades. Teremos eventualmente produzido arquitectos a mais. Ao contrário do que se passava na minha geração: havia trabalho, mas as pessoas nem sabiam bem o que esperar de um arquitecto. Houve uma diversificação das actividades: alguns estão em escritórios e outros enveredaram por curadoria, publicações, aulas, entraram em territórios como a cenografia, gestão do território. Eu próprio passei por um aperto enorme porque o trabalho desapareceu debaixo dos pés. Para atravessarmos esse período que agora me parece, por via do Douro, estar a melhorar, chegamos a fazer projectos sem honorários ou com honorários como nunca tinha feito. Para manter o escritório a navegar.
Já disse que não tem soluções fechadas. Mas como se faz frente a este problema?
A única maneira de olhar para isto é como se faz com as gruas no cinema: levantar e ver um bocadinho mais de cima. Sempre houve períodos de crise na profissão. Não como este, mas houve. Gosto de fazer uma comparação, que não é literal, com o outro período em que Portugal faliu, quando o Brasil se tornou independente. Portugal faliu mesmo: ¾ da economia do país viviam dependentes do Brasil. No mundo da arquitectura aconteceu que uma série de obras ficaram inacabadas. Ficou uma cicatriz física nas cidades. Um exemplo que todos conhecem: o Palácio da Ajuda. Nunca foi terminado. A profissão tem de se ajustar ao momento. Ninguém nos vai trazer soluções do céu. Esta diversidade de ocupações dos arquitectos já tem a ver com isso. A auto-iniciativa também pode ajudar: os jovens arquitectos mostrarem-se activos na sociedade, serem críticos. Na nossa área muitas vezes a nossa palavra é ocupada por pessoas de fora. Engenheiros, urbanistas, sociólogos. Os arquitectos têm formação e conhecimento para estar mais nesse debate. No passado estávamos tão preocupados com a vida de escritório que não nos preocupávamos com isso. Julgo que isso está a inverter-se. A nossa contribuição é técnica e estética. O Douro obteve a classificação como património mundial da humanidade na paisagem. Mas os núcleos urbanos não estão classificados. Aí há muito trabalho a fazer em matéria da imagem da cidade e das vilas. Do cuidado e da qualidade, que muitas vezes é olhada apenas do ponto de vista do tráfego, se tem mais ou menos sinais de trânsito, mais ou menos passadeiras. Isso não é tudo. Há muito a fazer e com um papel determinante dos arquitectos na intervenção no espaço público. Não podemos perder o pé nesta área.